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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
O SURGIMENTO DO MOVIMENTO INDÍGENA EM RORAIMA
A década de 1970 marcou um reordenamento do campo
interétnico em Roraima com o surgimento do movimento indígena organizado. Neste
novo quadro, a posse, o manejo e a circulação do gado entre comunidades
indígenas foi um mecanismo eficaz de reversão da ecologia pecuarista para usos
políticos de luta pela demarcação de terras indígenas. A ligação analítica entre
a formação do movimento indígena e a reversão dos significados do gado é um
importante elemento para os propósitos deste estudo, pois remete a um contexto
fundamental da luta pelas demarcações das terras indígenas desenvolvida pelas
lideranças que formaram o Conselho Indígena de Roraima - CIR.
A articulação do movimento indígena permitiu
aos diferentes povos apropriarem-se do conceito de “índio” contra o conceito de
“caboclo” forjado pelas elites regionais. Ao mesmo tempo, ao se olharem entre
si, representantes de diferentes regiões atentaram para o valor de suas
próprias tradições culturais, e identificá-las como patrimônio a ser defendido
da opressão posta em prática pelos “civilizados”.
Segundo Vieira (2007) as primeiras discussões
indígenas sobre seus problemas comuns datam de 1968 e começaram a ser feitas
durante os cursos religiosos promovidos pela Consolata na vila Surumu. Ao
término destas atividades os índios utilizavam o encontro para discutir os
problemas vivenciados em cada região e dentre eles principalmente a invasão de
suas terras. Com a chegada de D. Aldo Mogiano ao bispado de Roraima em 1975,
estes encontros com as populações indígenas seriam impulsionados pela nova
postura missionária de luta em defesa dos direitos territoriais indígenas,
dando origem às grandes “Reuniões Gerais dos Tuxauas”, realizadas no
transcorrer das décadas seguintes, chegando até os dias atuais das “Assembleias
Gerais dos Povos Indígenas de Roraima” que reúnem até mais de mil pessoas,
entre tuxauas professores e convidados anualmente.
As primeiras atas das Assembleias dos Tuxauas
e outras reuniões indígenas foram realizadas entre 1979 e 1995. A primeira
reunião foi realizada pelos missionários a partir de 1979 na região do Cotingo
e do Maturuca. As primeiras atas foram datilografadas pelos missionários
que participavam da organização dos encontros. A forma de organização dos
documentos a partir das presenças de cada região revela o crescimento da participação
dos tuxauas ao longo dos anos e as discussões indígenas sobre a criação dos
Conselhos Regionais que viriam posteriormente compor a estrutura do CIR.
Segundo os registros, a maioria das falas indígenas eram feitas principalmente
em língua Macuxi ou Wapichana e traduzidas entre si pelos Tuxauas. Lendo as
atas é interessante observar como os Agentes da Pastoral Indígena cuidaram de
datilografar as falas indígenas em português nos relatórios entre 1979 e 1987.
A partir deste momento, quando as atas são organizadas pelos secretários do
próprio CIR os documentos ganham formas mais sintéticas e são registradas mais
as posições de grupos regionais do que relatos individuais de lideranças.
Por um lado, os primeiros registros produzidos pelos
missionários são historicamente ricos para entender os momentos iniciais de
aproximação entre lideranças de tantas comunidades locais e a construção de uma
identidade política comum a partir de realidades específicas de cada região.
Nas falas indígenas registradas nestes documentos é possível encontrar
elementos importantes para contextualizar este momento de confronto entre
diferentes lógicas culturais e acessar as análises indígenas de
diferentes regiões no diálogo com setores da Igreja e do Estado na luta pela
defesa de seus territórios. Por outro lado, os registros feitos a partir de
1983 revelam as reflexões indígenas sobre a própria estrutura do movimento e de
sua ampliação. Registram também as análises indígenas sobre a atuação dos
“Grupos de Trabalho” que visitaram a região para realizar levantamentos da
situação fundiária a partir de suas demandas. algumas destas falas e as
posições coletivas deliberadas no transcorrer dos anos que o material cobre.
Estes registros têm uma dimensão valiosa como memória registrada da história de
lutas dos povos indígenas em Roraima e nos fornecem chaves para compreender
como os Tuxauas empreenderam a luta contra a violência, a opressão, o
preconceito e as injustiças impostas aos seus povos e construíram a consciência
coletiva de seus direitos territoriais como direitos humanos. A invasão de
fazendas de gado provocou uma série de impactos nas práticas indígenas de uso
territorial. Enquanto o avanço do gado destruía as roças, o desenho das
fazendas provocava uma série de constrangimentos à mobilidade dos índios e às
suas práticas de tradicionais. Com as fazendas, surgiram proibições à prática
de pesca com timbó, restrições do acesso aos lagos e outras fontes de água
perenes, e o cerco de regionais também refletiu no progressivo escasseamento da
caça. Além destes impactos sobre as práticas, o recrutamento de crianças
indígenas para pretensamente “aprenderem” a lidar com o gado junto às famílias
“civilizadas” na maior parte das experiências revelava o caráter servil do
regime de exploração do trabalho que caracterizou as relações entre fazendeiros
e índios. Este foi um expediente também amplamente utilizado pelos posseiros,
criando relações de compadrio que reforçava os laços clientelistas com os
índios. (SANTILLI, 2001).
As primeiras reuniões foram coordenadas pelos
missionários. Basicamente a metodologia destes encontros consistia em uma
reflexão religiosa inicial e a abertura de espaço para apresentação dos
tuxauas, quando cada representante expunha os problemasde sua região ou
comunidade, enquanto um missionário atuava como secretário e registrava as
falas dos participantes. Outra parte da reunião era dedicada à construção e
encaminhamento de propostas para solucionar os problemas. As primeiras reuniões
evoluíram para encontros maiores e, em 1977, foi realizada a “I Assembleia
Indígena de Roraima” que contou com a participação de 140 índios de diferentes
comunidades, dentre elas principalmente Macuxi, Wapichana e Taurepang, sendo 50
deles Tuxauas (VIEIRA, 2007).
Depois dos impasses criados junto ao órgão
indigenista oficial, a Igreja optou por não realizar a II Assembleia no ano
seguinte. Os missionários continuaram mobilizados em traçar determinadas linhas
de ação tendo como eixo central a demarcação das terras indígenas levando
denúncias de violação destes direitos à opinião pública. Em 1979 foi realizada
a “II Assembleia dos Povos Indígenas de Roraima”, reunindo 120 índios, dos
quais 44 tuxauas, representando mais de 20 mil indígenas pertencentes aos povos
Macuxi, Wapichana, Taurepang e Ingaricó. Naquele evento, a primeira fala
indígena do Tuxaua Terêncio da maloca Cumanã na região Surumu nos leva às
principais questões daquele contexto:
FALA DE UM TUXAUA NA I ASSEMBLÉIA DOS TUXAUAS EM 1977
FALA DE UM TUXAUA NA I ASSEMBLÉIA DOS TUXAUAS EM 1977
“Bom dia a todos os tuxauas do nosso Território.
Estamos aqui com uma finalidade bem clara. Vamos ver como vão as nossas
comunidades a nossa união. O que queremos é conhecer mais o que é bem e
procurar o melhor. Faz 5 ou 6 anos que fazemos reuniões e estamos aprendendo
muito. As dificuldades são muitas, mas devemos ir pra frente, não só nós, mas
todos os irmãos do mundo inteiro.Sabemos que vivemos marginalizados, por fora,
pisados; então devemos modificar os nossos caminhos e fazemos estas reuniões
por isso. Não devemos pensar que são os padres que devem resolver os nossos problemas,
a gente sempre ficava esperando pelos outros, mas isto não está certo. O que
devemos fazer é conversar para ver os nossos problemas. Antes quando não tinha
outra raça, as coisas eram melhores; agora os problemas são muitos, sobretudo
os problemas das terras. O tuxaua é dirigente e deve defender os direitos da
comunidade, antes de tudo as terras, porque sem estas não dá pra viver.Também nós temos direito de viver. Antes a gente não
sabia e confiava nos que chegavam, diziam que nos ajudavam e depois se tornavam
dono de tudo. Agora com as orientações novas a gente sabe. O nosso desejo é
viver tranquilos na nossa terra, livres como antes.
Vamos pensar sobre isso e ver o que devemos fazer.
No momento somos escravos, por causa daquelas que querem roubar o nosso
terreiro e isto está fora da lei. Dizem que a lei é igual para todos, mas não é
verdade: como é que um tem as terras de 30, 40, 100 famílias e nós sem nada...?
Será que nós não temos direitos? O que devemos tratar é isso e saindo levar uma
ideia mais clara sobre a nossa vida para viver mais unidos. O meu maior pensamento é isso: pensar na nossa
terra, no retiro que queremos fazer, criar os nossos animais. Estes são os
problemas de todos nós. Vamos então procurar a nossa felicidade, ver se dá para
a gente viver em paz. Nós somos uma raça diferente, não podemos viver
misturados com os brancos, porque não dá mesmo. Nós queremos achar o caminho
certo, o melhor para nosso povo, e sabemos que para achar este caminho precisa
sofrer, mas se o encontramos, devemos continuar firme nele. Estamos lutando
pela nossa terra, pela nossa liberdade. O nosso chefe da FUNAI às vezes
esculhamba a gente e muitas coisas que ele diz são erradas.
Nós não aguentamos a vida dos brancos: se um parente
entra num botequim logo pensa que cachaça é como caxiri e toma de cuia cheia e
não aguenta. Não tem coisa mais feia de ver índio bolando, jogado no chão. Nós
temos a nossa bebida, não precisamos das outras. Ninguém nunca falou que a
cachaça é boa, que prosta, nós falamos muitas vezes que precisa evitar a
cachaça. Eu sempre proibi a cachaça. Aos poucos vamos melhorar, os velhos podem
nos ensinar mais a descobrir o rumo certo. Se escutam vozes de novas leis que
querem fazer, de índio tornar-se como branco. Nós falamos que não está certo.
Nós queremos viver como estamos. O encontro é também para isso, todos nós saber
certo. Só isso obrigado”.
(Terêncio Luis da Silva, Tuxaua da maloca Cumanã, região Surumu, Reunião Geral dos Tuxauas de Roraima – Missão São José 1979).
(Terêncio Luis da Silva, Tuxaua da maloca Cumanã, região Surumu, Reunião Geral dos Tuxauas de Roraima – Missão São José 1979).
Para Santilli (2001) o surgimento da organização
indígena é contextualizado em um cenário clientelista que pautou não só
relações entre índios e regionais, mas também a atuação das agências
indigenistas, os substitutos do SPI e dos Beneditinos, a FUNAI e o Instituto da
Consolata. Naquela época tanto os religiosos quanto representantes locais da
FUNAI investiram na construção de intermediários políticos na figura dos ‘tuxauas’
ou líderes de aldeia (SANTILLI, 2001). Havia, contudo, diferenças importantes
neste campo de disputa pelo acesso à população indígena em razão das diferentes
posições dos agentes indigenistas oficiais, dos
missionários católicos e dos regionais no reconhecimento dos direitos
territoriais indígenas.
A estratégia utilizada pelos religiosos e depois
pela FUNAI foi de minar as relações entre índios e regionais através da
organização política e da libertação da sujeição econômica imposta pelo gado. A
produção da ruptura destes vínculos foi desenvolvida através de dois projetos:
o “Projeto da Cantina” e o “Projeto do Gado”. O “Projeto da Cantina” consistia
no repasse de lotes de mercadorias, bens de primeira necessidade que ficavam
sob a responsabilidade de uma pessoa indicada pela comunidade. Os produtos eram
comercializados em preços mais acessíveis e intercambiados por farinha ou ouro
garimpado pelos índios. Em resposta ao ditado comum na região na época pelos
grupos que invadiam as terras dos índios de que “terra sem gado é terra que não
possui dono”, o “Projeto do Gado” foi uma forma encontrada de retomar as terras
ocupadas pelos fazendeiros e dar visibilidade à territorialidade indígena.
FONTE: TEMPO DOS NETOS.
Abundância e escassez nas redes de discursos ecológicos entre os Wapichana na fronteira Brasil-Guiana.
Alessandro Roberto de Oliveira
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
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